novembro 01, 2017

Minha fantasia borrada



Luz azul. 
Como em uma rubrica de uma peça de teatro tomamos nota das ações e do espaço. A cor balança entre os meus seios e pernas, para alimentando cada pequena parte de mim. A luz preenche meu corpo vazio. A plateia cheia de você.  A repetição dos silêncios. O 'a' de azul que quebra a sequência de anáforas e construções sintáticas que você não ouve. Olho para os seus olhos no meio da luz branca que me cega. Delimito a sua presença com base nas memórias falhas que guardei, esperando acertar na cor da camisa xadrez e no lugar à direita. Quero entrar na sua cabeça, desabotoar sua camisa e dizer todas aquelas coisas que eu nunca disse. O diretor impede a ação, continuo parada. 
Luz azul. Continua.
Imagino teus olhos percorrendo meu corpo como um cego que tateia os rastros nas paredes. Guarda o lugar em que dobra a cintura na direita, a pinta no ombro esquerdo e aquela palavra rabiscada na pele. Te ouço cantarolar as canções que existem em mim e que você nunca decorou a letra. E você me leu tantas vezes. Escuto suas leituras de mim ecoando entre as cortinas e coxias. O palco gélido sob meus pés vibra com os passos que você não deu. O braço arrepia com o toque da sua mão que não me alcança. Mergulhada na imensidão azulada eu espero que você me salve, mesmo sendo eu a que sabe nadar melhor de nós dois. 
Luz azul escurecendo. 
Eu tenho medo. Medo de deixar de ser. Medo de ir. A luz branca parece ainda mais forte. Sinto tonturas. Meu corpo balança com as ondas que refletem na minha pele clara. Vê o mar revolto que habita em mim. Ouve os gritos das pessoas que aqui se afogam. E eu grito tanto para que você não entre. Não se afogue. Não vá mais fundo. Mas você me atinge na medula. Desespero. Lágrimas. O azul, cada vez mais preto, esconde meu rosto. Você perdeu a cor da minha íris, o lugar da pinta da bochecha e o corte do meu cabelo. Seus desenhos são falhos e eu vejo as tentativas de rabiscos deformando a minha imagem. Mas não desista. Tenho medo da rubrica que me assola e me apaga. Cada vez mais os meus traços vão se perdendo no escuro do palco, no vão escuro da coxia, escorrendo pelas beiradas dos abismos que não pulei. Sinto seus dedos soltando de leve a ponta dos meus e grito. 
Silêncio.
O grito mudo para na garganta e não sai. Não estava no script. Quero pegar os roteiros e rasgar, mas não consigo me mover. A fraca luz que ainda resta no meu rosto evidencia a lágrima de silêncio que não escorreu. Mas eu queria tanto que você a ouvisse. Peço que pegue suas canetas e me recrie com o colorido do seu toque. Aperta meus braços, beija minhas pernas, deita em mim. Me completa antes que a escuridão venha. Eu tenho medo do escuro, lembra aquela vez da. A memória falha. Quero inventar um milhão de vocês em um espaço pequeno de segundos, porque no agora eu já não lembro mais dos seus óculos da sua camisa xadrez do seu sapato do seu cheiro do seu toque d. 
Luz apaga. Escuro. Música iniciando em tom crescente:

"You could be my favourite faded fantasy. I've hung my happiness upon what it all could be. And what it all could be... with you."

Fecha as cortinas. Acende as luzes. Plateia vazia. 

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