maio 07, 2017

Eu que não bebo pedi uma dose


Moço, deixa eu te contar só mais uma. Você tem tipo daqueles caras babacas de bar, esperando que a bebida me engula para que mais tarde você tente o mesmo. Mas queria te contar umas coisas minhas, tão minhas que eu posso apenas espalhar para caras como você. Meu nome é aquele retirado de algum rótulo de bebida barata. Minha idade é baseada na minha vestimenta de menina-adulta-bem sucedida-carente. Você viu tudo isso tão fácil que não precisei jogar, o esteriótipo já estava pronto na sua cabeça. Vou te contar dramas que você vai rir e dizer que é bobagem, e vai querer me abraçar como consolo só pra chegar próximo dos meus seios. E eu vou esquivar, mais uma vez. 
Você repara no meu copo sempre cheio, me incentiva e até me banca em muitas doses com gosto de mijo e açúcar. O álcool desce rasgando, e eu disfarço as lágrimas de sempre com a minha fraqueza com destilados. Mas moço, você não vê. Vomito histórias e traumas em cima de você e disfarçando você me paga mais um. Paga e apaga a minha história, anula essas frases todas que eu estou te falando com mais esse copo com pouco gelo. 
Você já bebeu algumas tantas, eu vejo seu olhar rodar um pouco e a mão estar meio mole. Mas eu continuo. Porque eu preciso te contar que a realidade do sóbrio é cruel. Moço, olha para o meu rosto e encontra as olheiras que eu não escondi. Repara nas marcas do meu rosto cansado, no meu sorriso frouxo amarelado. Vê a lágrima que secou na bochecha durante o terceiro ou quarto pedido. Segura a minha mão fria e trêmula enquanto tô aqui pra te contar tanta coisa.  É tão difícil. Você não acha? 
Eu peço para que você olhe nos meus olhos e ouça os gritos da minha alma, mas você olha para as minhas pernas. Escuta, só mais dez minutinhos, o bar vai fechar e a gente vai cair de bêbado na calçada e você vai tentar me levar pra casa e. Por favor, ainda temos um tempinho e eu preciso tanto. 
Queria que soasse bonito, como a avenca partindo, mas o Caio não me ensinou essa. Você pergunta se Caio é algum ex-namorado e eu digo com uma risada amarela que sim. Você não percebe, mas fico roubando textos e frases de autores, porque é muito mais fácil se esconder na palavra alheia. Suplico entre goles: me traduz, lê cada entrelinha escondida nessa minha fala desconexa. Cada gota que eu não bebo é mais uma razão para que você me force mais um drinque. Mais um, e outro, outro, até que meus dedos formiguem e eu já não reconheça nomes ou formas.
Porque sabe seu moço, eu vivo sóbria. A minha vida é vivida na carne, esfolada sem anestesia. Os cortes profundos doem como a morte, e os superficiais ardem inesgotavelmente. Você não sabe como é isso, porque o garçom já sabe seu nome e bebida preferida, o nome dos teus filhos e da tua mulher. Mas eu sei, moço. Eu sei o que é ter uma decepção e sentir ela na pele, corroendo durante dias, meses e anos, sem intervalos. Eu sei como a dor dos dias passa lentamente e as desilusões nunca somem. Vejo tragédias que matam e torturam os outros e o meu sentimento de culpa não some. As mulheres abusadas, as crianças mortas, a fome, o frio, a porra da vida! Mas você não sabe, você as engole em um único gole e tudo bem. O clichê da "vida segue" afundado num copo de bebida funciona muito bem pra você. Mas a minha vida estanca. Eu parei aqui e vi a sua mulher preocupada em casa enquanto você me canta com piadas infames. 
Olho para frente e o espelho do bar mostra a figura que eu mais temo encontrar. Enquanto sóbria eu vejo cada mínima cicatriz em zoom. Os olhos fundos de noites mal dormidas, de trabalhos acumulados em pilhas de papéis na sala, a maquiagem borrada de mais um dia difícil e lento. A vida é lenta, meu bem, você não acha? Não, não quero dizer que eu gosto da forma mais lenta. A vida, tô falando da merda das nossas vidas. Ela passa em câmera lenta para que a gente curta cada momento ao máximo. Meu uso frequente de palavras-chulas-não-convencionais faz você me chamar de menina travessa e eu tenho vontade de chorar. 
O bar está pra fechar, você pede a saideira e eu rejeito. Não. Mais uma e eu sei que me perco. Eu não bebo, sabe. Pedi uma dose aqui e outra ali pra tentar ser como os outros, mas o resultado foi falho. Mais uma vez. Hoje eu quis colocar essa fantasia que você caiu só pra achar um bobo como você para me ouvir. Vai para casa, toma um banho, dá um beijo na sua mulher e dorme. Porque eu tô indo no meu caminho incerto, de passos tortos e sóbria. Sempre sóbria.  

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